Na noite passada, estava
sossegadamente a actualizar a minha informação sobre a semiologia clínica da
infecção pelo vírus Ébola quando me surgiu uma ideia; tola, irracional, bizarra
até, mas interessante.
- Tudo começou com a fase
hemorrágica da doença: - Hemorragia? - Porquê hemorragia?
A hemorragia na doença Ébola tem
relação com a coagulação intravascular disseminada (CID).
- Coagulação intravascular
disseminada (CID)? – O que é isso? A coagulação intravascular disseminada é uma
forma grave de doença em que o sangue coagula dentro de todos os vasos do
organismo. No entanto, apesar desta coagulação geral e disseminada do sangue, o
que se manifesta são hemorragias, e são hemorragias porque os factores de
coagulação e as plaquetas são consumidos e na sua ausência, o sangue restante
fica muito fluido e provoca hemorragias. Nesta situação, verifica-se que, nos
laboratórios, o fibrinogénio está diminuído, pois foi transformado em fibrina
para formar os coágulos e produtos da degradação da fibrina, como os D-Dímeros,
estão aumentados.
- Para quê isto tudo? – Que
interesse é que isto tem? Penso.
Na realidade desde o inicio da
doença Ébola que os D-Dímeros estão aumentados mas a coagulopatia de consumo, a
CID, a morte do doente, vai-se prognosticar quando os D-Dímeros começam a
aumentar muito.
- Lá nos recônditos dos meus
pensamentos profundos, absorto, intensamente alheio à realidade circundante,
pensei no meu passado, quando interno de Hematologia Clínica, no IPO de Lisboa,
observava doentes com leucemia aguda.
- Leucemia aguda? – Ora esta! –
Que tem a leucemia aguda, um cancro do sangue, a ver com Ébola, uma doença
infecciosa viral?
Pois é. Pensamento atrás de
pensamento, e a associação livre de ideias flui. Flui livre como o sangue
livre, na coagulação intravascular disseminada. Lolololol,...
- Entre as leucemias agudas, há
uma; a leucemia promielocítica aguda, a M3 do antigo grupo
Francês-Americano-Britânico (FAB) que pode causar coagulação intravascular
disseminada. – A associação de ideias continua. Esta coagulação intravascular
disseminada e até a remissão da leucemia, são tratadas com o ácido trans
retinóico.
Nova associação livre de ideias,
novo fluxo de pensamento: - Ácido trans retinóico, trans, cis e trans,
estereoisomeria; química, retinoides, retinenos, retinais, retinois, retinóico,
funções químicas. Todos derivados da Vitamina A.
Os derivados da Vitamina A, a
tratar coagulação intravascular disseminada na leucemia promielocítica aguda? -
Sim. Tal não é estranho; a isotretionina ou ácido 13-cis-retinóico é outro
exemplo de medicamento usado no tratamento de uma doença: a acne grave. A acne
é uma doença da pele, do revestimento externo do organismo.
A vitamina A tem várias acções no
organismo: nos olhos, na visão nocturna, nos bastonetes, na diferenciação das
células ao longo do ciclo celular mas também no funcionamento de órgãos e
tecidos do sistema reprodutor, na protecção da pele e mucosas e de todos os
tecidos epiteliais. - Sim de todos os tecidos epiteliais; desde os glandulares
aos revestimentos externos e internos, aos epitélios e endotélios, às mucosas
intestinais, ao urotélio e todo o restante revestimento interno do sistema
urinário, enfim a todo o tecido de revestimento.
A vitamina A é armazenada no
fígado, nas células estreladas e os seus derivados, são lípidos lipossolúveis
que se encontram abundantemente em órgãos de vertebrados como o fígado e rins
mas também, em vegetais, sob a forma de carotenóides. O beta caroteno é a
provitamina A mais abundante em vegetais e frutos como cenoura, beterraba, batata-doce,
damasco, papaia e manga.
- Tanto pensamento, tanta
reflexão, tanta especulação, tanta lenga-lenga! – Que tem isso tudo a ver com a
infecção pelo vírus Ébola?
- Que tem isto a ver? – Ora! Tem
tudo! Tem tudo a vêr! Se não vejamos:
- O reservatório do vírus parece
estar nuns morcegos que se alimentam de frutos; frutos esses que contêm beta
carotenos, provitamina A.
- Os homens que sobrevivem à
doença Ébola continuam a transmitir a doença por via sexual durante cerca de 2
meses; a vitamina A interfere nos órgãos do sistema reprodutor.
- A doença transmite-se através
do contacto com fluidos corporais como o sangue, urina, fezes, saliva, suor e
transpiração etc. ora, todos os fluidos corporais são obrigados a passar por um
tecido epitelial, seja este de revestimento interno, externo ou glandular; a
vitamina A, suas várias formas e seus derivados estão precisamente implicados
no desenvolvimento e manutenção de todo e qualquer tecido epitelial. - Até a
coagulação intravascular disseminada tem a ver com o endotélio capilar que
reveste internamente os vasos sanguíneos. Lolololol,...
- Além da febre e sintomas
acompanhantes a Ébola manifesta-se por vómitos, diarreia, exantema cutâneo
maculopapular, conjuntivite, olhos avermelhados e outras hemorragias cutâneas e
das mucosas; tudo em relação com tecidos epiteliais onde a vitamina A e seus
derivados são fundamentais.
- Mas curiosamente, antes da
coagulação intravascular disseminada e da evolução para a morte com falência
mulitiorgânica, já as transamínases hepáticas se encontram aumentadas e a
albumina diminuída; parece que o vírus Ébola se dirige primeiro para o fígado,
local rico em vitamina A, pois é ele quem a armazena. Mas também nas fezes
diarreicas, carregadas de vírus, abunda vitamina A, que por aí é eliminada do
organismo.
- Mesmo as pessoas que não
morreram, ao recuperar da Ébola podem ter complicações como dores testiculares,
esfoliação cutânea com ou sem alopécia mas também perturbações oculares como
hipersensibilidade à luz, epífora, uveíte anterior e posterior com
coriorretinite ou até cegueira. – E agora? – Quem não se lembra que a vitamina
A faz bem aos olhos? – Que a isotretionina, um derivado da vitamina A, trata a
acne?
- Tanta evidência, tanta
evidência, penso,...
- Toca o telefone. Atendo. – Interrompo
o pensamento mágico, aquela especulação deslumbrante que me transportou para o
mundo do sonho, da fantasia, do deixar o pensamento voar, o fluir das ideias
apenas por associação livre, numa procura de padrões de repetição, ... – Volto
à carga.
- Tanta evidência, tanta
evidência,... – Tem de haver uma relação. Penso.
- Será a própria vitamina A ou
seus derivados retinoides que atraem o vírus? – Serão os receptores celulares
dos retinoides ou as suas proteínas transportadoras, que o atraem? – Será que a
glicoproteína viral e a mucina se ligam aos receptores dos retinoides para que
o vírus se introduza na célula? – Será que o RNA viral codifica alguma
alteração dos receptores retinoides ou do seu metabolismo? – Qual será o
mecanismo pelo qual a vitamina A e derivados permitem a interacção entre o
vírus Ébola e o hospedeiro?
- Toca novamente o telefone.
Atendo novamente. – Volto. Já não foi como antes.
- Quebra da magia, quebra do
pensamento, mas surge a ideia: Com tanta evidência, certamente já alguém pensou
nisso antes?
Pesquiso no Google. Nada. Vou ao
Medline. – Surpresa! Com tantos milhões de investigações científicas apenas uma
relaciona os retinoides com o vírus Ebola. Esta afirma que a activação de
receptores RIG-1 inibe a replicação do vírus Ébola. RIG-1 é um gene indutível
por ácido retinóico.
Outra investigação cientifica
aponta que os retinoides inibem a replicação do vírus da parotidite infecciosa
e outra ainda informa que a vitamina A diminui a mortalidade e a morbilidade em
50% de crianças com sarampo. Acontece que os vírus do sarampo, da parotidite
infecciosa e Ébola são vírus RNA, envelopados e de de sentido negativo, que
necessitam das mesmas polimerases do RNA, as suas doenças têm alguns aspectos
clínicos em comum e até pertencem à mesma ordem Mononegavírus.
- Pergunto:
- Será que a suplementação ou
tratamento da doença Ébola com vitamina A ou retinoides, diminuirá a sua
mortalidade?
- Se estivesse no terreno, faria
a experiência.
- Se não, nada a perder.
- Se sim: Adeus meu amigo Ébola!
Dia 19 de Setembro de 2014